Queremos mesmo ter a Alexa na formação?

 

Numa entrevista ao podcast O avesso da canção, o letrista Carlos Tê (autor de canções como Chico Fininho, do Rui Veloso, e Problema de Expressão, dos Clã) conta que na sua juventude a experiência de ouvir, apreciar e compreender um disco era vivida em comunidade: numa altura em que o acesso a novas obras era ainda difícil e os grandes sucessos internacionais demoravam a chegar a Portugal, quem conseguia comprar um disco reunia em sua casa os demais interessados para que, em conjunto, o pudessem explorar. 

Hoje em dia esta experiência é inimaginável, até porque o próprio conceito de disco parece estar em risco de sobrevivência. Com uma maior dispersão da oferta musical, há cada vez mais fenómenos de nicho. Os grupos de interesses (alinhados em torno de um género musical ou do amor a uma banda, por exemplo) aumentaram em número e perderam dimensão. 

E não é só no universo da música que isto acontece. É raro encontrar duas pessoas que estejam a ver a mesma série ao mesmo tempo, por exemplo. Tirando alguns fenómenos mediáticos de curta duração, o que em geral se passa é que enquanto uns terminam The Office, outros estão a ver Seinfeld, e outros ainda a começar Mad Men

Quando todos víamos Lost ou Grey’s Anatomy no mesmo dia, a manhã seguinte podia ser passada a discutir o significado de uma cena, uma troca de olhares, uma insinuação que ficou por esclarecer. Podíamos também unir-nos em torno da antecipação do próximo episódio. O que achas que vai acontecer? Será que ele se safa? Hoje temos menos oportunidades de criar sentido em conjunto. 

O que tem tudo isto a ver com formação? 

No livro The Curious Advantage, os autores defendem que, tal como já é possível pedir à Alexa para tocar jazz na nossa sala e contar com uma seleção musical adaptada às nossas preferências, em breve veremos o mesmo nível de personalização nos percursos de aprendizagem nas empresas. Na sua perspetiva, os programas de formação tenderão a ser cada vez mais individualizados, tendo em conta a função, localização, tempo disponível, estilos de aprendizagem, experiência passada e outros critérios relevantes para a experiência do formando. 

Retomando os exemplos da música e das séries, não é então difícil de imaginar, num cenário em que a oferta formativa venha a explodir e a ser targetizada ao nível do indivíduo, o que acontecerá às comunidades de aprendizagem. Se um mesmo grupo de novos líderes que até hoje percorreria o mesmo percurso formativo passar a ter acesso a conteúdos personalizados, que nada têm em comum, como poderão interpretar, discutir e relacionar as aprendizagens em conjunto? Como poderão crescer com as experiências do grupo? 

Há ainda, na minha opinião, uma outra questão que se coloca, e que tem a ver com o impacto desta personalização total e automatizada na própria curiosidade: O que acontece num mundo em que os conteúdos e as formações a que um formando tem acesso são determinadas por algoritmos, com base em e-learnings que já fez, artigos que já leu, tempo que passou a ver determinados vídeos?

A investigação disponível sobre o que se vai passando nas redes sociais que utilizam estes mecanismos pode dar-nos algumas pistas. Num estudo sobre os efeitos das recomendações algorítmicas sobre os padrões de consumo dos utilizadores do Spotify, concluiu-se que existia uma redução da diversidade das suas escolhas musicais. Ou seja, quanto mais os ouvintes seguiam as sugestões geradas automaticamente para si, menos ampla se tornava a sua experiência de escuta de canções. Além disso, nos casos em que a diversidade aumentava ao longo do tempo, isso acontecia porque os utilizadores optavam por um consumo mais orgânico em detrimento das recomendações geradas pela plataforma. 

A aprendizagem é, em certa medida, guiada pela curiosidade e pela descoberta. Ao ver um vídeo, um formando pode gerar uma associação que é fruto da sua experiência de vida, do que já viu, já pensou, já sentiu, já aprendeu. E a partir daí, pode querer explorar caminhos de interesse que extravasam a capacidade antecipatória de um algoritmo. 

Uma das sugestões para quem pretende expandir a sua rede de conhecimentos, e que é comum a autores conhecidos por terem um domínio de interesses muito alargado, como Malcolm Gladwell ou Daniel Pink, consiste em seguir o trilho das notas de rodapé nos livros ou, numa versão digital, explorar os links disponibilizados nas páginas que nos interessam. Na perspetiva destes autores, estas referências são como mapas que nos ensinam a explorar assuntos de forma mais diversificada e aprofundada. 

Following the links is a commitment to learning by serendipity. - Dan Pink

Com esta reflexão não pretendo pôr em causa a importância de se adequar os conteúdos à necessidade dos formandos. Acredito, e anos de experiência demonstram-no, que esse alinhamento é condição fundamental para a eficácia da formação. Parece-me no entanto que importa analisar criticamente o impacto da individualização e automatização totais da experiência formativa. Aprender sem a presença do outro e sem uma certa medida de imprevisibilidade e abertura à descoberta será, na minha perspetiva, uma experiência irremediavelmente mais pobre. 

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