Para quê ler ficção?

 

Não me recordo da formulação exata da pergunta, mas a questão que ficou a ecoar na minha cabeça, pela frustração de não ter uma resposta pronta para dar, foi “para quê?”

Para que serve ler ficção? Porque havemos de lhe dedicar o pouco tempo livre que temos, quando há livros mais estruturados para facilitar a aprendizagem, que incluem listas de ideias a reter no final de cada capítulo, questões de reflexão e vídeos-resumo nos sites dos autores?

O facto de não ter sido capaz de responder mostrou-me que nunca tinha pensado seriamente sobre o tema. São assim as boas perguntas. Levam-nos por caminhos inexplorados, obrigam-nos a descobrir o que não sabemos e a ouvir o que pensamos. Foi assim que, há uns anos, acabei a escrever sobre o porquê de ler biografias

Desta vez, a procura de respostas levou-me ao domínio da investigação, mas também às esferas da prática e da experiência pessoal. Porque há coisas que não são passíveis de converter em estudos científicos e há outras que, podendo ser testadas em laboratório, produzem resultados de validade questionável. 

Dessa exploração resultaram nove razões pelas quais me parece que vale a pena, hoje e sempre, ler ficção:

#1. Para desenvolver empatia

O professor, psicólogo e escritor Keith Oatley refere-se às obras de ficção como “o simulador de voo da mente”. Tal como um piloto pode treinar sequências de procedimentos sem sair do chão, um leitor de ficção pode desenvolver competências de relacionamento interpessoal ao ler um romance. 

De acordo com a sua investigação sobre os efeitos emocionais da leitura de ficção, quando nos identificamos com as personagens, descentramo-nos temporariamente de nós próprios e passamos a ver o mundo pelos seus olhos. Quando estão em perigo, os nossos corações batem mais depressa. 

É possível argumentar que são as histórias, não necessariamente ficcionais, que estimulam esta capacidade de nos colocarmos no lugar do outro. Afinal, quem é que nunca chorou a ver o telejornal? No entanto, a ficção permite-nos espreitar para onde o jornalismo não tem acesso: a vida interior das personagens e o seu percurso ao longo de um período alargado de tempo. Estas características são comuns às biografias, mas a ficção tem uma vantagem em relação a este género: ao ler um romance estamos mais dispostos a suspender a descrença, pelo que não estamos preocupados em verificar se o que estamos a ler é verdade ou não. Temos as defesas em baixo, e isso permite-nos entrar na história a um nível de profundidade que mesmo uma boa biografia não permite aceder.  

#2. Para expandir a imaginação

“Vivemos tempos de excesso de realidade nas propostas literárias atuais, como se a imaginação fosse desinteressante.” - Dulce Maria Cardoso

Esta suspensão da descrença, inerente e necessária à leitura de uma obra de ficção, permite-nos criar uma realidade alternativa, um mundo diferente daquele que conhecemos. Nesse outro universo podemos, por exemplo, explorar de forma segura as consequências de tendências que vemos hoje  - como seria um mundo em que uma percentagem significativa de eleitores votassem em branco (Ensaio sobre a Lucidez), em que houvesse uma crise de fertilidade (The Handmaid’s Tale), ou em que os robôs se imiscuíssem nas nossas relações amorosas (Machines Like Me)? Podemos ainda, levando a leitura mais adiante, imaginar o que seria possível fazer para evitar essas consequências, e que futuros alternativos poderíamos desenhar ou construir. 

#3. Para treinar o foco

Ler um romance, um conto ou mesmo uma novela gráfica requer um investimento de atenção que outras formas de entretenimento não exigem. Consideremos um período de tempo padrão: passar 50 minutos a ler ou a ver uma série vai exigir diferentes níveis de concentração. Mas a atenção funciona como um músculo, e encontrar formas de a desenvolver e reforçar nunca foi tão necessário como hoje.  Além disso, como escrevi recentemente, são as atividades que exigem algum esforço, dedicação, foco e tempo aquelas que mais promovem a recuperação de energia. 

#4. Para promover a diversidade

Tipicamente, o nosso universo de amigos e conhecidos é um núcleo de pessoas cujos interesses, perspetivas e experiências são bastante aproximados, o que reduz a nossa capacidade de alargar e flexibilizar pontos de vista. 

Ler ficção permite-nos sair da nossa experiência e considerar outras visões do mundo: a da esposa principal numa família poligâmica em Moçambique (Niketche), a de um rapaz de ascendência vietnamita a crescer nos Estados Unidos (Na Terra somos brevemente magníficos), ou a de um Presidente que perdeu o filho (Lincoln no Bardo). 

“Ler foi como… O meu mundo tornou-se milhões de vezes maior. Esse costumava ser o objetivo de ler, de certa forma. Agora não é. Agora, as pessoas estão sempre a dizer: “Não há livros sobre pessoas como eu. Não me vejo neste livro.” Penso sempre: Um livro não é um espelho, é uma porta!” - Fran Lebowitz

#5. Para alargar o vocabulário

Os livros “técnicos” tendem a ter um léxico algo limitado e condicionado pelo jargão da área a que dizem respeito. Pelo contrário, os livros de ficção trazem com eles um universo de novas palavras, algumas até inventadas (Achimpa). Isto é importante, não só porque nos permite comunicar melhor, mas também porque a literacia emocional, isto é, a capacidade de identificar e nomear emoções, e a granularidade emocional, ou seja, a capacidade de distinguir experiências emocionais com algum nível de precisão, contribuem para a saúde das nossas relações. 

#6. Para ver zonas cinzentas

Nos livros de não ficção, geralmente há um ponto de vista “certo”, ao qual se opõem todas as ideias “erradas” que o autor visa refutar. Alguns livros de ficção também replicam de forma pouco elaborada esta divisão do mundo entre heróis e vilões. É fácil, apelativo, até interessante, mas não é assim que o mundo funciona. A boa literatura traz-nos personagens complexas, com vidas interiores difíceis, decisões duras, motivações nem sempre claras ou compreensíveis. E isso ensina-nos a compreender, interpretar e navegar as zonas cinzentas da vida. 

#7. Para aceder a um espaço seguro de reflexão

As histórias permitem-nos analisar temas sensíveis de forma aberta, honesta e segura. A organização Reflection Point promove conversas em contexto de trabalho em torno de pequenos contos lidos por todos os participantes. Um facilitador experiente guia a discussão em pequenos grupos, de acordo com os temas a trabalhar. Num caso específico, analisou-se um conto em que um diretor de uma escola, Michael Obi, falha miseravelmente na sua tentativa de modernizar a instituição. A história viria a abrir espaço para conversas críticas, com a equipa a adotar a linguagem do livro para discutir o seu próprio trabalho: “Eu conduzi o projeto desta forma”, disse um dos colaboradores, “mas não quero ser um Michael Obi.”

#8. Para lidar com a ambiguidade

Investigadores na Universidade de Toronto descobriram que pessoas que liam contos demonstravam uma menor necessidade de “fechamento cognitivo” (desejo de chegar a uma conclusão rápida na tomada de decisão) do que pessoas que liam ensaios.

Isto é importante porque as pessoas que têm uma grande necessidade de fechamento cognitivo tendem a confiar demasiado em pistas iniciais, tendo dificuldade em mudar de ideias quando chega nova informação. Produzem também menos hipóteses de explicações alternativas e integram menos pontos de vista nas suas análises. 

Por outro lado, indivíduos que resistem melhor a esta necessidade tendem a ser mais ponderados, criativos, e a demonstrar à vontade perante narrativas em conflito. Uma vez que a ficção nos obriga a parar, a integrar pontos de vista diferentes e a mudar de ideias à medida que progredimos na leitura, contribui para reduzir o desconforto perante a ambiguidade.

#9. Para dar o exemplo

"Acredito que temos a obrigação de ler por prazer, tanto de maneira privada como em locais públicos. Se lemos por prazer, se os outros nos veem a ler, então todos aprendemos, todos exercitamos as nossas imaginações. Mostramos aos outros que ler é uma coisa boa." - Neil Gaiman

Por fim, ler ficção, e fazê-lo de forma pública, é um acto de amor. É mostrar que existem portas por explorar e abrir caminho para que outros possam entrar. Do outro lado não veremos certamente as mesmas coisas, e que bom.

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Fontes consultadas:

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Lista de obras de ficção mencionadas ao longo do artigo:

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