Criatividade em teletrabalho: Será possível?

 

Nos últimos meses muito se tem discutido sobre o futuro do teletrabalho. Perdoem-me a franqueza, mas a discussão parece-me despropositada. E inútil.

Despropositada porque nem o trabalho remoto começou em 2020, nem o fim do período de exceção criado pela pandemia leva a questionar a sua continuidade. 

Basta-nos recuar até 2001. Em setembro desse ano, a Wikipedia tinha apenas oito meses de existência e já contava com 10 mil artigos. Em março de 2003 eram 100 mil - só na edição em língua inglesa. Havia 500 editores a trabalhar ativamente quase todos os dias. No início de 2014, havia edições em 287 línguas. O número total de artigos ascendia aos 30 milhões. Foi, nas palavras de Walter Isaacson, o maior projeto colaborativo de sistematização de conhecimento da história. Acrescentaria eu: inteiramente conduzido à distância. 

O que me leva ao segundo ponto: a discussão é inútil, porque o que está em causa não é a continuidade do trabalho remoto, mas sim em que condições é que ele poderá persistir. 

Tratando-se de uma questão multifacetada e complexa, vou debruçar-me neste texto apenas sobre um dos temas que gera mais controvérsia (sendo certo que, mesmo assim, algumas variáveis ficarão por explorar): será possível realizar tarefas criativas à distância? 

Vamos recuar mais alguns anos, sair do universo das empresas e mergulhar numa área que, penso que todos concordarão, é do domínio criativo: a da escrita. 

Em 1987, Neil Gaiman (autor britânico com obra publicada em vários géneros, sobretudo dentro do segmento de literatura fantástica) escreveu as primeiras 5.000 palavras de uma história e enviou a alguns amigos com um pedido de feedback. Um ano mais tarde, o telefone tocou. Era Terry Pratchett, precursor dentro do universo da fantasia e um dos seus heróis. “Acho que sei o que acontece a seguir na tua história. Queres vender-me a ideia? Ou escrevê-la comigo?”

Gaiman escolheu a segunda hipótese. Escreveram o primeiro rascunho em nove semanas de chamadas telefónicas intermináveis, em que liam o que tinham escrito, discutiam o que viria depois, e desligavam para voltar a escrever. No final do processo, reuniram-se em casa de Pratchett para unir as pontas soltas e garantir que a história resultava. Resultou: Good Omens foi publicado em 1990.

Embora a Internet não fosse ainda um meio viável de comunicação, não restam muitas dúvidas de que este foi um projeto criativo desenvolvido em colaboração e à distância. 

O que esta história demonstra é que trabalhar à distância não significa não comunicar. Linda Hill, professora na Harvard Business School, defende que neste mundo híbrido em que vivemos as empresas devem promover uma conversa explícita sobre normas de comunicação internas e alinhar regras confortáveis e claras para todos: na prática, quando é que nos juntamos e para fazer o quê. 

Do lado das empresas que já têm alguma experiência em teletrabalho, esta recomendação é seguida e complementada com a identificação de um momento do dia em que todos os elementos da equipa estão online. Na Dropbox, por exemplo, foram instituídos blocos de colaboração de quatro horas. 

O objetivo não é agendar videochamadas ininterruptas durante meio dia todos os dias, mas garantir que durante um período de tempo pré-definido os colaboradores estão disponíveis para colaborar em tempo real, quer isso signifique dar resposta a pedidos de colegas, discutir ideias ou construir algo em conjunto. 

Há no entanto algo a dizer sobre a forma como estes momentos de colaboração são geridos e dinamizados. De acordo com os resultados de um estudo publicado este ano pela revista Nature, as videoconferências podem inibir a geração de ideias criativas. Segundo os autores, a razão pode estar na redução do campo visual causada pela concentração no ecrã, que limita o processo de associações entre pensamentos. 

Isto não significa necessariamente que as videochamadas não devem ser utilizadas para este fim. Talvez faça sentido, ao usá-las com o propósito de gerar ideias, incentivar a mobilidade das pessoas, dando-lhes liberdade para participar de pé e circular pelo espaço em que se encontrem, por exemplo. Pode também, obviamente, planear-se o processo criativo de modo a que a fase de geração de ideias seja feita presencialmente. 

Por outro lado, o estudo permitiu concluir que o foco cognitivo mais reduzido durante as videochamadas pode ser benéfico para outras atividades criativas, como a seleção da ideia a desenvolver. Podem então usar-se estes períodos de colaboração para o processo de convergência e delimitação dos caminhos a seguir. Vale a pena recordar que as longas chamadas de Gaiman e Pratchett tinham dois grandes objetivos: rever o trabalho já produzido e alinhar próximos passos. 

Este desdobrar do processo criativo em etapas permite lançar uma ideia final: a de que o processo criativo não precisa de ser integralmente desenvolvido em equipa. Podem alternar-se ciclos de colaboração e trabalho independente, dando espaço ao que de melhor a equipa e a individualidade podem trazer. 

É certo que há ainda muito por explorar, descobrir e aprender no que diz respeito aos formatos remoto e híbrido de trabalho. Importa por isso, talvez mais do que nunca, delimitar bem as questões que precisamos de ver respondidas. E procurar na História exemplos e modelos que nos possam servir de referência.

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Fontes principais:

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