Hábitos para pequenos leitores

O meu pequeno leitor com um dos seus livros favoritos

Imagine-se que um grupo de crianças de quatro anos é convidado a:

  • Ouvir uma história sem imagem (como num áudio-livro)

  • Ver uma história em animação (como num desenho animado)

  • Ouvir uma história enquanto vê ilustrações (como num livro ilustrado)

Qual dos formatos lhe parece que promoveria maior atividade cerebral? E qual contribuiria para uma compreensão mais profunda da história?

O teste foi conduzido pelo investigador e pediatra John Hutton e permitiu mapear a ativação de determinadas redes neuronais e a conectividade entre redes em cada uma das condições.

  • Na condição em que a história era contada em formato áudio, verificou-se que as redes relativas à linguagem foram ativadas, mas havia reduzida conectividade global entre todas as redes. As crianças pareciam estar com dificuldade em compreender a história. 

  • Na experiência comparável a um desenho animado, havia muita atividade nas redes de percepção auditiva e visual, mas pouca conectividade entre as redes neuronais. Esta foi a condição com piores resultados ao nível da compreensão da história. 

  • No formato equiparado à leitura de um livro ilustrado, registou-se maior atividade e conectividade em todas as redes analisadas. 

Ao refletir sobre os resultados, o investigador concluiu que quando lemos histórias ilustradas aos nossos filhos as imagens fornecem uma base a partir da qual as crianças podem construir uma representação mental da história e elaborar a sua compreensão. 

Quando as histórias são contadas sob a forma de desenhos animados, por outro lado, esse trabalho é feito pela criança, pelo que o desenvolvimento de tais capacidades pode ficar comprometido. 

É ainda de considerar que o efeito observado pode estar minimizado pelo facto de a experiência ter sido conduzida num equipamento de ressonância magnética funcional. Segundo o autor do estudo, a proximidade física com os pais ou outras figuras de referência no momento de ouvir uma história pode potenciar os efeitos positivos da leitura em papel.

Ora, se são os livros físicos (e ilustrados) a melhor ferramenta para o desenvolvimento destas capacidades nas crianças, como podemos fomentar o gosto pela leitura nos mais pequenos?

Com base na minha experiência pessoal e em algumas leituras que fui fazendo, partilho algumas sugestões para criar hábitos de leitura na infância:

 

1. Criar rituais em torno da leitura

Em 2018, o Finnish Reading Center, uma associação sem fins lucrativos que pretende promover a leitura, a literacia e a literatura, criou uma iniciativa para oferecer um saco de livros a cada criança nascida na Finlândia. 

No estudo de impacto do programa, concluiu-se que um terço dos pais continuava a não ler diariamente para os filhos, com 13% a ler uma vez por semana ou menos. O psicólogo Adam Grant explica porquê: para estimular o gosto pela leitura, não basta ter livros - eles têm que fazer parte do dia-a-dia.

Na experiência finlandesa, verificou-se que o período mais habitual de leitura para as crianças era ao final do dia, antes de dormir. No entanto, tendo em conta a rotina de cada família, talvez valha a pena explorar outros momentos em que seja possível ler em conjunto: no sofá ao final da tarde ou na cama ao fim-de-semana de manhã, por exemplo.

Quando os filhos do jornalista e crítico literário Dwight Garner eram pequenos, a família costumava fazer “Festas de Leitura com Pipocas”: todos juntos, enroscados na cama ou no sofá, liam livros ilustrados até as pipocas acabarem.

Para quem a rotina diária e semanal é mais exigente, pode ser interessante alargar o horizonte temporal e criar rituais sazonais: visitar uma biblioteca nas férias, ir à Feira do Livro todos os anos, ou escolher livros sempre que se vai de viagem. 

Mesmo sem uma periodicidade definida, fazer visitas regulares a livrarias também pode ser um ritual em família. Muitas livrarias hoje têm zonas agradáveis e apelativas para as crianças, além de dinamizarem sessões de leitura e workshops com temas variados.

Fotografia da Livraria Faz de Conto em Coimbra

 

2. Fazer da leitura um gosto partilhado

A partir do momento em que as crianças são capazes de participar num diálogo, pode fazer sentido alimentar conversas sobre leitura. Adam Grant sugere que as viagens de carro ou as refeições à mesa podem representar boas oportunidades para estas interações, mas qualquer momento em que o assunto se proporcione será adequado. 

Mesmo que nem sempre pareça, as crianças prestam atenção aos nossos interesses, pelo que mostrar entusiasmo pelo que se está a ler ou por um novo livro que saiu pode ser uma boa forma de as convidar para um fascínio partilhado.

Recuperar os livros da nossa infância pode também alimentar este prazer conjunto - na minha experiência, a descoberta de um passado dos pais até aí desconhecido transforma os livros em relíquias cujos segredos importa desvendar.

Por outro lado, envolver a criança na escolha de livros para oferecer, sobretudo a amigos, pode contribuir para a percepção de que um livro é um objeto especial que escolhemos partilhar com as pessoas de quem gostamos. 

 

3. Ter livros sempre à mão

Pamela Paul e Maria Russo, autoras do livro How to Raise a Reader e editoras do The New York Times Book Review, recomendam que se crie um espaço para livros no quarto da criança e, se possível, que eles sejam dispostos de modo a manter as capas visíveis. 

Em nossa casa temos uma estante pequena tradicional, em que os livros são arrumados lado a lado, mas também um pequeno expositor que permite que as capas sejam vistas de frente. No entanto, tanto o nosso filho como as crianças que nos visitam gostam de tirar os livros da estante convencional, por isso diria que não é essencial apostar na visibilidade - as lombadas também despertam curiosidade.

Fotografia de uma estante da casa - as lombadas a apelar à descoberta

Além do quarto, procuramos ter livros em quase todas as divisões, prontos a cativar o interesse do nosso pequeno leitor a qualquer momento. 

Pode ainda ser interessante criar o hábito de levar sempre livros infantis quando se sai de casa. Os pais de crianças pequenas já estão habituados a transportar diferentes formas de entretenimento para restaurantes e consultórios, porque não levar antes (ou também) um livro? 

 

4. Apoiar o interesse

Há pessoas que têm algumas restrições quanto a deixar que as crianças manuseiem os livros livremente. A minha opinião é de que elas precisam de poder explorar o livro enquanto objeto que tem muitas potencialidades, mas que tem também as suas limitações (e é importante que as descubram).

O meu filho chegou a colar autocolantes num livro, o que provavelmente seria impensável para alguns pais, mas era um livro cartonado, os autocolantes tinham uma cola fraca, e eu sabia que ia ser possível retirá-los. Para mim, sublinhar, escrever e desenhar nos livros faz parte do prazer de ler, e esta foi, à medida da sua idade, a primeira experiência do género para o meu filho. 

Fotografia do livro “intervencionado”

Parece-me também importante não condenar as escolhas espontâneas que as crianças fazem. Muitos pequenos leitores regressam periodicamente a livros que estão indicados para idades inferiores. Diria para olharmos para esses casos como momentos de procura de conforto num livro que não exige tanto ou ao qual se associam boas memórias. Nós adultos também gostamos de ler coisas mais simples de vez em quando. 

Se a creche ou jardim de infância tiver uma rotina de leitura para as crianças que permita levar livros de casa, vale a pena aproveitar essa oportunidade, mas sem forçar. Houve um período em que o meu filho não queria levar livros para a educadora ler, e depois voltou a querer. É importante não as fazer sentir que o livro é uma obrigação.

Fora da escola, facilitar trocas e empréstimos de livros entre amigos pode também ser uma forma de apoiar a criação de uma comunidade de pequenos leitores.

 

5. Ler na sua presença

Para o fim fica aquela que me parece a sugestão mais importante de todas: dar o exemplo

Num vídeo recente produzido pela Unicef, pediu-se às crianças que imitassem os hábitos dos pais. Uma das crianças sentou-se no sofá com uma mão à frente do rosto, palma virada para dentro, segurando um objeto imaginário. Na outra mão, o dedo indicador, esticado e virado para o dito objeto, fazia um gesto de deslizar de cima para baixo. Uma das mães comentou: “Não sabia o quanto ela me observava”. 

As crianças estão sempre a observar os adultos das suas vidas. Ler com elas, mas também na sua presença enquanto brincam, é dos melhores ensinamentos que lhes podemos dar. 

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