Divagação, a capacidade que a IA não consegue imitar
Numa conferência apresentada na Sociedade de Psicologia de Paris e publicada originalmente em 1908, Henri Poincaré procurou descrever, a partir de recordações pessoais, o que acontecia na mente de um matemático durante o processo criativo.
O trabalho era iniciado por um conjunto de esforços, aparentemente infrutíferos, de resolver um problema. Por força das circunstâncias (uma viagem, a chamada para o serviço militar), havia um período mais ou menos longo de distanciamento face ao problema. Durante este intervalo, a descoberta da solução surgia de forma súbita, mas segura e convicta. Havia então que sistematizar e elaborar o resultado a que se havia chegado.
Em 1926, o psicólogo inglês Graham Wallas partiu da descrição de Poincaré, de um discurso do físico Hermann von Helmholtz e da sua própria experiência para sistematizar estas etapas no livro The Art of Thought:
Preparação - o problema é formulado e investigado em múltiplas direções
Incubação - há um período inconsciente de reflexão sobre o problema
Iluminação - a resposta surge de forma espontânea
Verificação - a solução é testada e retiram-se implicações
Esta formalização contribuiria para esclarecer o papel que os processos inconscientes desempenham no trabalho criativo. No seu pequeno e fascinante guia para a criatividade, John Cleese conta que se apercebeu do impacto destes processos quando perdeu um texto que tinha escrito em conjunto com Graham Chapman e, procurando evitar a ira do amigo, o reescreveu de memória, tendo concluído mais tarde, quando encontrou o documento original, que a segunda versão era bastante superior à primeira. O seu cérebro tinha continuado a trabalhar no material sem que disso tivesse consciência.
O que se passa então nestes momentos em que, não se passando nada, tudo se passa na realidade?
Quando passamos de um modo de atenção focada para um modo de divagação, o nosso cérebro não pára de trabalhar - pelo contrário, está ativamente a fazer associações entre ideias.
Este modo de funcionamento pode gerar ansiedade ou depressão, sobretudo quando os pensamentos tendem a focar-se excessivamente na antecipação do futuro ou na revisitação do passado. Foi o que levou os professores Dan Gilbert e Matthew Killingsworth, da Universidade de Harvard, a afirmar num artigo publicado em 2010 na revista Science que uma mente que divaga é uma mente infeliz. Em situações de stress ou perigo, a divagação pode evoluir para ruminação e representar uma fonte de angústia.
Por outro lado, quando é aberta e abrangente, a deambulação mental pode dar ao cérebro a oportunidade de recuperar de um esforço intenso de concentração e abrir a porta a que se formem novas ideias. É sobretudo quando estamos a realizar tarefas que requerem baixos níveis de atenção que a mente entra neste modo exploratório e associativo. E é por isso que atividades como andar, a que me referi num texto anterior, podem facilitar a geração de soluções criativas.
Segundo Alex Soojung-kim Pang, que estudou as rotinas de destacados cientistas, escritores, matemáticos e guionistas, aquilo que distingue as pessoas cujo trabalho depende da criatividade é o facto de desenvolverem práticas diárias que reservam tempo para que a divagação possa acontecer.
Há aliás vários relatos de artistas que o demonstram:
Gosto muito de escrever sem escrever. É o que os meus amigos chamam os meus momentos de ataraxia. Fico estendido a olhar para a parede. Sem fazer nada. - Antonio Tabucchi
Há um tempo grande no processo de escrita que é de pensamento, sem escrever, só a pensar como estruturar a crónica - é constante, e acontece durante as outras tarefas. - Dulce Maria Cardoso
Gosto muito de varrer o jardim, as escadas. São alturas importantes para me concentrar noutros pensamentos, noutros mundos que depois vou utilizar quando estou sentada, ou a escrever, ou a pintar, ou a dormir. - Mónica Baldaque
Ainda que a natureza dos processos de divagação mental continue a ser investigada, a sua relevância parece indiscutível e, segundo o neurocientista Moshe Bar, a incubação poderá ser uma das razões pela qual a evolução favoreceu a sua preservação.
Como explicou numa sessão de perguntas e respostas na Google, se ensinássemos um computador a divagar, talvez ele se tornasse mais criativo. No entanto, porque a tecnologia só consegue imitar os aspectos observáveis do funcionamento cerebral, a divagação tem resistido à réplica. E ainda bem, acrescentaria eu.